Artigo – O frevo e o passo, de Pernambuco

O Artigo do musicólogo e pesquisador Valdemar de Oliveira é cópia retirada do Portal Jangada Brasil. A importância do texto está na linguagem clara e objetiva, que aproxima a compreensão do leitor para a concepção de um diagnóstico de como o Frevo se formou, de quais características seu corpo sonoro é formado, e como se consolidou a polifonia entre o sentido de múltiplos componentes simultâneos. 

Valdemar de Oliveira – Formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1922. Em 1924 doutorou-se com a tese Musicoterapia. Apresentamos copilação da página do Portal Jangada Brasil  com o Artigo: O frevo e o passo, de Pernambuco.

Veja resumo biográfico (Valdemar de Oliveira)

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Fonte:
JANGADA BRASIL – A CARA E A ALMA BRASILEIRAS
Artigos – O frevo e o passo, de Pernambuco

Valdemar de Oliveira (Recife, dezembro de 1945)

(Extraído de Boletin Latino Americano de Música. Rio de Janeiro; Montevidéu, Instituto Interamericano de Musicologia, 1946, ano 6, v.6, p.157-192)

A vibração paroxística do frevo é realmente uma coisa assombrosa. É, enfim, um verdadeiro allegro num presto nacional. É, sem dúvida, o entusiasmo, a ardência orgíaca, mais dionisíaca de nossa música nacional.

E aquele rapaz que dançou! Mas será possível que uma coreografia, assim, ainda se conserve ignorada dos nossos teatros e bailarinos? Que beleza! Que leveza admirável! É uma fonte riquíssima. É um verdadeiro título de glória, que o país ignora, simplesmente porque entre nós são muito raros os que têm verdadeira convicção de cultura”.
(MÁRIO DE ANDRADE)

Pernambuco (somente Pernambuco, não quero falar nem mesmo em seus vizinhos mais próximos), Pernambuco tem uma música e uma dança carnavalescas, coisa absolutamente sua, original, que se criou no meio do povo, quase espontaneamente, e se cristalizou depois, como um traço marcante de sua fisionomia urbana. Urbana, sim. Até seria mais justo dizer Recife, do que Pernambuco. Porque foi, de fato, no Recife, que isso tudo aconteceu. Foi no Recife dos fins do século XIX, começos deste, que a música foi aparecendo, conduzindo a dança, ou a dança se foi personalizando, sugerindo a música. É impossível distinguir bem: se o frevo, que é a música, trouxe o passo ou se o passo, que é a dança, trouxe o frevo. As duas coisas se foram inspirando uma na outra e completaram-se. É possível, porém, afirmar que o frevo foi invenção dos compositores de música ligeira, feita para o Carnaval, enquanto o passo brotou mesmo do povo, sem regra nem mestre, como geração espontânea. O compositor, que não posso apontar como erudito, mesmo porque nem sabia o que estava fazendo, e o povo, este muito agreste ainda, até para saber imitar — os dois bem que traziam, na massa do sangue, os germes de sua criação, um e outro agindo em função dos folguedos do Carnaval. Os músicos pensavam em lhe dar mais animação e a gente de pé-no-chão queria, isso sim, música barulhenta, impetuosa, viva, que convidasse ao esperneio, no meio da rua. Sucedeu, assim, um trabalho recíproco de ajuda, de colaboração, que esteve longe de ser feito premeditadamente. Tudo de palpite, de improviso, para pegar ou não, e pegando. Quando menos se viu, a música tinha ganho, de ano a ano, características próprias, inconfundíveis e, do mesmo modo, a dança, que já não se parecia com nenhuma outra, nem mesmo com os passos que estavam no seu subconsciente, quando o povo começou a sua invenção. Os nomes de batismo vieram muito depois de nascida a criança, já ela crescida e dona de si. A palavra frevo veio tarde, quando a música — que era uma “marcha” para todos os efeitos — se impunha no Carnaval. Quanto à outra, é palavra comum, de aplicação natural à coisa que ela define.

As raízes do frevo e do passo são muito superficiais. Um botânico diria: fasciculadas. Não são como as do maracatu, que mergulham na escravidão. Nem como as dos cabocolinhos, que vêm do tempo dos colonizadores, sabe-se lá. Nem negro, nem índio, nem branco português ou espanhol. Se se tivesse de despistar a filiação genealógica, os avós e os pais apareciam bem mestiços. Mulatos. Sobretudo mulatos. Foi o capoeira do Recife, o ancestral do passo. Quanto ao frevo, surgiu de uma mistura heterogênea, cujos ingredientes têm menos interesse do que a criação coletiva que deles nasceu.

Artigos – O frevo e o passo, de Pernambuco
Valdemar de Oliveira (Recife, dezembro de 1945)

Tópicos 

        • O FREVO
        • FONTES DE ORIGEM DO FREVO
        • COMPOSITORES DE FREVOS
        • O FREVO E A MARCHINHA CARIOCA
        • ELEMENTOS DE EXPRESSÃO
        • O NOME DE BATISMO
        • ENSAIO DA MORFOLOGIA FREVO
        • O PASSO
        • ORIGENS DO PASSO: A CAPOEIRA
        • OS PASSOS DO “PASSO”
        • SEXUALIDADE E RELIGIOSIDADE
        • DINAMOGENIA DO FREVO
        • ESTILIZAÇÃO DO PASSO

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O FREVO

Essas coisas, quando nascem na consciência da gente, isto é, quando a gente verifica a importância social que elas estão tomando, já faz muito que nasceram de misturas, influências e invenções ocasionais do povo. E o povo não costuma datar os atos corriqueiros da sua vida…
MÁRIO DE ANDRADE,
em Ilustração musical, ano I, nº 2

Os primeiros compositores de frevo, compreende-se, não imaginaram nada de original. Eles foram aproveitando os elementos harmônicos, rítmicos e melódicos das músicas em voga, dançadas ou cantadas. A pena corria ao gosto popular da época. E o mais que se fazia era apelar para os instrumentos de metal e para um aligeiramento dos desenhos melódicos, em certas partes da obra, destinadas à dança. Veja-se a composição das primeiras fanfarras: piston, clarinete, requinta, dois hornes, dois trombones, dois baixos e um bombardino, para os floreios do contracanto. Por outro lado, o ritmo ia sendo melhor sustentado pelo tarol, que apareceu, pela primeira vez, em 1901, na fanfarra dos Caiadores, e pelo tambor surdo, que o comandante Alberto Gavião Pereira Pinto, do 40°, de Infantaria, introduziu nas orquestras de Pás e Lenhadores, em 1906. O surdo nunca mais abandonou as fanfarras do frevo.

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FONTES DE ORIGEM DO FREVO

As fontes onde se dessedentavam os compositores carnavalescos da época, eram a modinha, o dobrado, a quadrilha, a polca e o maxixe. Até que o frevo apurou, as mesmas influências agiram, no correr dos tempos. E os exemplos são muitos.

A princípio, bem pobre era a melódica, que se inspirou, por muitos anos, nos lânguidos desenhos da modinha. O quaternário das modinhas imperiais se vestia de binário, tomava um gosto de dobrado e saía à rua, arrastando o povaréu. Repare-se nesta parte da Marcha nº 1, dos Lenhadores, escrita em 1903, por Juvenal Brasil:
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modelada, sem dúvida, na conhecida modinha Quem sabe?, de Carlos Gomes:
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Já a 2.ª parte dessa mesma marcha convidava à dança, uma vez cessada a cantoria da 1.ª. Veja-se:
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Dobrado foi coisa que influenciou muito a produção carnavalesca da época. Em vários frevos de então, está bem clara a marca do dobrado. Lembro-me de anotar o seguinte exemplo, tirado ao frevo Canhão 75, de Faustino Galvão, e que é direitinho um trio de dobrado:
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O mesmo se pode dizer das jornadas de pastoril, o divertimento preferido, no tempo das “festas”, desde o de Santa Rosa, do Teatro da Capunga, de 1870, até o de Herotides, da Encruzilhada, ou o de Canela de Aço, de Santo Amaro. O documento nº 3 é eloquente.

Influência forte foi a das quadrilhas, a cuja voz, já dizia Lopes Gama, “mexe-se o Norte, remexe-se o Sul e anda tudo em bolandas”. Certas progressões de quadrilhas estão inteirinhas em alguns frevos. Assunte-se, por exemplo, nesta 4.ª parte da quadrilha Os domingos no Poço, de Cândido Lyra, escrita por volta de 1898:

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E compare-se com esta introdução do frevo Carnaval de Pernambuco, de Plácido de Souza:

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Ou com esta outra do Chegou fervendo, de Zumba:

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Polca e maxixe, por sua vez, deram sua forte contribuição ao frevo.

A grande maioria das peças de frevo pode ser tocada como maxixe, desde que se lhe alterem o ritmo e o andamento.

O começo do processo de cristalização do frevo coincide, mesmo, com o apogeu do maxixe, naquela época em que Brandão Sobrinho, no Helvética, alucinava o Recife com os tremendos maxixes do Pra burro! e tudo quanto era casa de mulher onde se dançava era conhecida por maxixe, como o da Júlia Peixe-Boi, em Santo Antônio. Foi por esse tempo, de 1905 a 1915, que o frevo cresceu, ganhou fama e se batizou.

Por aí, pelos caminhos do maxixe, ele estende uma raiz tímida para a música europeia (a polca) ou hispano-americana (a habanera), se a gente quiser pensar com Artur Ramos, que Renato Almeida cita, como cita, também, Luciano Gallet, este desenhando o esquema de filiação histórica — polca brasileira, tango, maxixe. Do autor da História da música brasileira é, também, um entre-aspas expressivo, referente ao maxixe: “fusão da habanera, pela rítmica, e da polca, pela andadura, com adaptação da síncopa africana” — entre-aspas que bem poderia ser aplicada ao frevo, metendo-se-lhe, de mistura, pequenas doses de modinha, dobrado, quadrilha e música de jornadas de pastoril.

A influência das músicas hispano-africanas da América na formação do frevo me parece, realmente, muito clara, se fazendo sentir através do maxixe, que recebeu, como afirma Mário de Andrade, os estímulos rítmico e melódico da habanera, do tango e da polca. É na altura de dizer isso que Mário reproduz, em sua Pequena história da música”, uma introdução instrumental de habanera peruana oitocentista, que se liga diretamente às introduções de maxixes nossos, a saber:

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Certos de nossos frevos ventania lembram essa amostra, porque, por sua vez, lembram a introdução de certos maxixes. Vejam-se alguns dos exemplos que vão adiante.

O frevo, hoje, é uma entidade musical respeitada. Mas, despistar suas origens, abrir caminho na terra para ver até onde vão suas radículas, é obra difícil. O que se compreende logo é que, de começo, ele não era polca, nem quadrilha, nem dobrado, nem modinha, nem habanera, nem nada e era tudo isso muito bem misturado. Tinha graça que o frevo nascesse puro, sem eiva nenhuma, numa terra adubada com tanto adubo estran­geiro. Está longe, porém, de ser folk-music, porque se fez e se criou sem pedir nada à alma do povo, ao seu sangue, à sua raça, mas, satisfazendo-o. Foi coisa que lhe deram e ele aceitou, o que, de antemão, já se sabia. O povo do Recife nunca fez, nunca compôs, um frevo. Nunca, que se dissesse, surgiu um motivo, uma sugestão de assobio, uma “deixa” subida da massa. Nunca colaborou neles, a não ser quando era cantado e uma que outra quadrinha podia aparecer, alusiva a fatos do tempo. Fora disso, alheamento completo até a época dos ensaios dos clubes, quando lhe oferecem o prato agradável ao paladar, sem se lhe dar direito de escolha de cardápio. Agora: pode recusar, como recusou muitos deles. Como refugou os frevos de Zeferino Bandeira que vieram para a rua, por volta de 1918, forçando motivos de operetas vienenses, a Baiadera e outras, por causa do sucesso de Clara Weiss, no Santa Isabel. Quiseram forçá-lo a cantar, não aceitou. Isso tinha sido no princípio, com melodias chulas, sem interesse poemático, que desapareceram:

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“Se esta rua fosse minha,
eu mandava ladrilhar
com pedrinhas de diamante,
para meu amor passar…”

Em 1901, vinha chegando de Pau d’alho, Zuzinha, hoje capitão José Lourenço da Silva, mestre da banda da Força Policial de Pernambuco. Tomou a batuta da banda do 40° de Infantaria. Ele, e mais Juvenal Brasil, do Lenhadores, e Manuel Guimarães, do Vassourinhas, é que começaram a dar forma ao frevo. Já o Carnaval botava na rua grandes clubes pedestres — os Caiadores, os Lenhadores, as Pás, os Empalhadores do Feitosa…

Por esse tempo, a introdução do frevo ainda era calma. O povo se mexia pouco. Talvez, porque nesse tempo, a polícia tivesse começado a campanha contra os capoeiras, mandando Valdevino, João de Totó e Jovino dos Coelhos para a detenção, outros para Fernando de Noronha, outros, diretamente, para o necrotério. Pouco a pouco, as introduções foram tomando o seu caráter violento, impetuoso, desabrido. O povo se foi expandindo, deixando de cantar, tomando gosto na coreografia, firmando os passos. Chegou, o frevo, ao que hoje é, sem muita diferença com o que era há dez ou quinze anos passados.

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COMPOSITORES DE FREVOS

Os compositores de frevo pertenceram, e ainda pertencem, a uma classe especial, à parte dos que se dedicam à valsa e ao samba. Gente que nunca foi de salão ou de teatro, nunca se misturou com os outros, só ocupada em sua postura anual: mestres de banda — Zuzinha, Juvenal, contra-mestres — Zeferino Bandeira, José Aniceto (Casaquinha), músicos de banda — Antônio Silva (Sapateiro), Levino Ferreira, bons pistonistas — Carnera, Plácido de Sousa, um ou outro mal-assombrado — Edgar Morais, Ulisses de Aquino. Sem a bossa, ninguém se aventura a escrever frevo, no Recife. Alfredo Gama, Manuel Machado, José Ribas, Luís Figueiredo, Sérgio Sobreira, Rinaldo Silva, compositores de famosas “valsas pernambucanas”, de muito pas-de-quatre e muita cançoneta bonita do Recife dos primeiros lustros do século XX, nunca se meteram com o frevo, nunca. Os que tentaram, fracassaram. Outros abordaram o que se convencionou chamar marcha-frevo, muito carioquizada: Nelson Ferreira, Raul Moraes, João Valença, Capiba. Frevo mesmo, não.

A uns e outros, fugia-lhes o jeitão do frevo, que nem toda a gente pega. Ainda num concurso de frevos, organizado pela Federação carnavalesca Pernambucana, por volta de 1937, surgiu certa composição muito bem feitinha, muito bem escrita, querendo ser frevo, mas longe disso. Disse-se que o autor era Ernani Braga. Foi chamado, pelo pseudônimo, em letra de forma, para explicar certas coisas. Não apareceu. Parece que era mesmo. A composição ficou como uma prova da incapacidade do músico erudito em escrever um frevo para o povo do Recife aceitar de corpo aberto. Isto só o tem conseguido um número limitado de compositores populares que conhecem a arquitetura musical do gênero, jogam habilmente com os timbres e sabem dar à produção o seu faciesespecífico.

Os ases do frevo surgiram, sempre, das bandas, porque as bandas são ricas da matéria-prima para a confecção da obra — os metais. Os metais e as madeiras. Mas, principalmente, os metais. Corda é que não entra. Já se tem visto algum contrabaixo, que o músico vai carregando consigo como se carregasse uma formidável hidrocele, e tocando sempre. Isso, porém, é falta de músico, e não necessidade de matiz instrumental.

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O FREVO E A MARCHINHA CARIOCA

A partir de 1915, mais ou menos, surgiram, no Recife, os blocos — ontem, o Apois, Fum!, o Bloco das Flores, hoje o Pavão Dourado, os Batutas de São José. Invenção de violonistas, brincadeira para as jovens que não aguentam rojão do frevo, grêmios familiares de moças, braço com braço, o pai por perto, pegado num violino ou num violão. Em consequência, surgiram as marchas-frevos, de introdução movimentada, segunda parte melodiosa, para cantoria. Esta é outra história. Nada tem a ver com a do legítimo frevo. Um abastardamento. Ou uma facilidade, sem significação, até porque carioquizada. E o frevo não sofre, nem nunca sofreu, influência alguma, por mais remota que seja, de marchinha carioca. Não sei: quando comparo os dois, penso em coisas de contraste extremo: em casa de sapé e arranha-céu, em rebocador e couraçado de guerra, em água de flor de laranja e jalapa. Nunca vi duas músicas menos parecidas, a não ser no binário. Começa que, na carioca, a predominância é melódica. Há solistas, há partes corais. Não existe, porém, garganta ou pulmão que possa acompanhar a sucessão galopante de semicolcheias, os imprevistos das síncopas, as negaças da linha melódica do frevo sobre o pentagrama. Se, ao iniciar-se a segunda parte, o desenho convida ao canto, logo cresce, ascende pauta acima, detém-se numa nota aguda — os pistons dão o si, o dó, o ré — e descai subitamente, sem animar a nova investida. Numa, tudo é cantabile, frouxo, fácil. Noutra, tudo é ritmo sacudido, difícil. Ritmo musical e ritmo motor, que a outra não tem. Sobretudo isso, eis o que caracteriza a essência mesma do frevo: sua dinamogenia. A marchinha carioca é assexuada. O frevo é viril. Ela convida a cantar, a entrar no coro, e assobiar baixinho o estribilho contagioso. O frevo não convida. Arrasta. Sua efervescência rítmica é qualquer coisa de imãtético, contra a qual é difícil resistir. Enquanto a marcha carioca flui, risonha ou irônica, triste ou sarcástica, falando em amor, em mulher, em política, o frevo, que não se canta, denúncia sua violência, seu desenfreio, sua disposição, com os próprios títulos com que se batiza: É de frevê!Freio de arArreliadaFuracão no frevoFuxicoChegou fervendo!Bicho danado!TempestadeLá vai tempo!Apare essa bomba!Mal-assombradaTufãoBuliçosaAguenta o repuxo!Reação. E, com a guerra à porta, o que surge tem cheiro de pólvora: Metralhadora pesadaLança torpedo”, Vôo picadoBase aéreaFortaleza voadora, Granada de mão… Não há, neles, sinal de doçura, de apaziguamento, de bondade, de tristeza. Tudo é de maus modos, fanfarrão ou heroico, chamando pra brigar, decidido. E, por isso mesmo, quase sempre escrito em maior, fá natural, si bemol, sol. Mesmo em menor, os menos comuns, não perdem a aspereza. Há um indecifrável encanto, uma certa força nostálgica na fusão da melodia triste com o rasgado repentino dos metais em ff, quase uma contradição, espécie de tristeza desesperada, arranque de pessoa que passa de um pranto amargo a uma revolta incontida. É exemplo a 2ª parte de Luzia no frevo, de Antônio Sapateiro, ou a do exemplo 24:

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Por muito tempo, (e agora ainda) essas marchas em menor eram tocadas de preferência quando o clube se recolhia, noite alta, à sede. Chamavam-nas, genericamente, marchas-regresso. Há algumas, mais antigas, de melodia pungente, tristonha, tradução do cansaço e da saudade do folião, num fim de dia carnavalesco. São, talvez, mais brasileiras. Em compensação, menos pernambucanas.

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ELEMENTOS DE EXPRESSÃO

As orquestras de jazz deturpam o caráter, por assim dizer heroico do frevo, aveludam sua estridência metálica, roubam-lhe arestas, tornando-o, por isso mesmo, menos brilhante. Os saxofones tomam relevo na textura harmônica, romantizando a execução. Em desvantagem numérica, os trombones passam a plano secundário. O piano sacrifica o equilíbrio dos timbres. Há uma efeminação geral. Às vezes, uma ou outra corda acaba de estragar tudo. É perigoso desdenhar essas coisas quando se trata de apresentar um artigo musical tão individualizado já, como é o frevo. Por essa razão, quem quiser ouvir um frevo tipicamente pernambucano, não vá para o rádio ou para o baile das sociedades mundanas, onde o que há é jazz-band e nunca fanfarra, mas procure o clube pedestre em desfile, com seus músicos, no seu ambiente. Aí é que pode ouvir o frevo e ver o passo.

Na fonte mesma. Acompanhando o “peso” de uma requinta, três clarinetes, três saxofones, três pistons, dez trombones, dois hornes, três baixos tubas, dois taróis, um surdo. Tudo o mais é falso. Animal selvagem só está bem — e só se observa bem — na mata, solto. Os grandes clubes pedestres do Recife podem vir ao centro da cidade, exibir-se. Mas, seu habitat é outro.

Também o maracatu se sente melhor nos seus terreiros, lá para Beberibe ou Casa Amarela. E os Cabocolinhos, perto dos mangues dos Afo­gados. Em São José, ele encontra um bom “clima”. E curioso: o frevo não se dá bem nos descampados. Nas ruas largas. Nas avenidas. Por­que lhe falta ressonância, a ressonância que vem das casas altas das ruas estreitas, onde ele se criou. Também me parece que em Harlem escutaremos melhor a música dos negros norte-americanos, na Mourana, o bom fado, num rancho, um bom desafio. Além disso, nas avenidas, sobra espaço. E o apertão da massa humana é o frevo em si mesmo.

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O NOME DE BATISMO

A palavra vem disso. De frever. Por corruptela, frever, frevo, frevança, jrevolência. Criou-a, diz-se, Oswaldo de Almeida, escritor teatral sempre escondido em pseudônimos: Paula Judeu, das revistas teatrais, Pierrot, das crônicas carnavalescas. Teria lançado o vocábulo, que pegou. Ai divulgado o que boca anônima criara. A primeira alusão é de 12 de fevereiro de 1908, no Jornal Pequeno. Já em 1909, o ditado do ano era “Olha o frevo!” A palavra caiu na boca do mundo, e daí entrou no Dicionário de brasileirismos, de Rodolfo Galvão, no Vocabulário pernambucano, de Pereira da Costa: “Efervescência, agitação, confusão, reboliço; apertão nas reuniões de grande massa popular no seu vai-vem em direções opostas, como pelo Carnaval…”

Designa, hoje, a um só tempo, a música típica do Carnaval recifense (espalhada pelo Nordeste todo, já chegando ao Rio de Janeiro e interessando o carioca) e o esfregado da massa comprimida em crise carnavalesca.

Dele, citam-se três modalidades:

      • o frevo “ventania”, tecido, quase exclusivamente, pelo menos na introdução, por semicolcheias, como este de Joaquim Wanderley, Tempestade:

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      • o frevo “coqueiro”, de melodia escrita em tessitura alta, no exemplo do Picadinho, de Artur Gabriel:

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      • frevo“abafo”, sobrecarga de trombones e pistons, em fortíssimo, para abafar o adversário, tal é o caso de Freio de ar, de Paulo Ramos:

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E
NSAIO DA MORFOLOGIA FREVO

O frevo é uma música curta, que se pode escrever numa página só, em andamento moderado, tendendo para rápido. Tem duas partes, cada uma com 16 compassos (raramente a segunda chega a 24). Nada mais. À primeira, chamam “introdução”, mas, já é a própria música, sua porção mais violenta, mais chocante, mais séria. Nessa introdução, não há um modelo arquitetônico único. A inspiração do compositor joga arbitrariamente, embora submissa a certas constantes melódicas. Ele utiliza suas colcheias e semicolcheias como um perdulário e visando a um único fim: a movimentação da melodia, que se desenvolve, continuamente, em imprevistos e surpresas. Pode dizer-se mesmo que o frevo é tanto mais dinamogênico quanto mais explora esses imprevistos e essas surpresas, à custa, principalmente, das síncopas e dos grupos de dois semicolcheias e um colcheia. Exemplo frisante dessa preocupação, por parte do compositor, é a introdução do frevo Sussuarana, de Hermes da Paixão, no qual se pode observar que quase nenhum compasso é igual a outro, tendo cada um deles uma composição particular:

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As mais das vezes, as frases musicais são alinhavadas dentro do mesmo compasso, sem esperar ponto final no primeiro tempo do compasso seguinte, como se pode verificar em muitos dos exemplos citados nesta nota. Frequentemente, a rítmica se diverte em deslocar tempos fortes e fracos, desarticulando a métrica para melhor estimular o passista. Exemplo é esta entrada de É de frevê!, de Ulisses de Aquino:

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Por vezes, a melodia, traçada pelos metais, se desenha sobre um fundo de semicolcheias sucessivas, num “corrido” de palhetas, como se observa no frevo de Levino Ferreira, Agüenta o repuxo!:

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É curioso reparar que, na gravação feita, no Rio de Janeiro, dessa música, os executantes atribuíram maior valor ao pentagrama das semicolcheias, abandonando a plano secundário a frase melódica dos quatro primeiros compassos (e de outros mais), espécie de “princípio ativo” que delas se servia, apenas, como “veículo”.

Observação digna de registro é o imponente acorde, em tutti ff, que se ouve quase sempre, a certa altura da introdução, no 11º, no 12º, às vezes no 13º compasso, e que se diria o clímax da composição.

Esses acordes são antecedidos, às vezes, por simples colcheias ou quiálteras. Quero dizer: não surgem imprevistamente. São “preparados”, à custa de progressões bem características da composição. Estude-se, no caso, o exemplo 7 e o 16 que são típicos.

À introdução, segue-se o que comumente se denomina 2ª parte. A transição de uma a outra (a que chamam “passagem”) é um dos aspectos mais característicos do frevo, um selo de sua originalidade. Intervêm, nela, todos os instrumentos, sobressaindo-se os metais, num “rasgado” violento. Mas, ora essas passagens são bem limitadas na arquitetura geral da obra, ora se estendem, por um, dois compassos, para dentro da melodia constitutiva da 2ª parte, já sendo ela mesma, quando parece ser ainda uma transição.

Vejamos algumas dessas passagens, de inconfundível traço. Uma, em quatro compassos, o terceiro dos quais inicia, já, a 2ª parte (É de frevê!, de Ulisses de Aquino):

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Outra, nas mesmas condições (Arreliada, de Ulisses de Aquino):

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Ainda outra, sempre o terceiro compasso dando começo, já, à referida parte (O bando no frevo, de Filinto Carnera):

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Outra mais, esta de Plácido de Sousa, em Lança torpedo:

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E uma última, de José Ferreira, em Fortaleza voadora:

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Observação interessante é a seguinte: em muitos frevoshá, entre a introdução e 2ª parte, um compasso a mais, uma como “terra de ninguém”, que o ouvido nem chega a acusar, parem, existe. É o caso dos 17º compassos dos frevos constantes do exemplo 13 e do 16. Completam a figura de transição e se suspendem à soleira da 2ª parte. Coisas assim são absolutamente típicas do frevo pernambucano. Não as encontro em nenhuma outra música.

Assim se entra na 2ª parte. Logo, à sonoridade vermelha dos metais sucede o aveludado morno dos clarinetes e, mais modernamente, porque trazidos com o jazz, dos saxofones. Descansam os metais, fazendo ouvir-se, apenas, em notas secas, como quem esporeia, de leve, um animal (exemplo 24). Ou em comentários rápidos, relampagueantes, muito ligados, em tessitura alta, tal se pode verificar no exemplo seguinte (Furacão no frevo, de Edgar Morais):

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Em geral, do 8º ao 13º compassos, os metais voltam a dominar, avançando, fogosamente, pauta acima, para um novo clímax (exemplo 24). Tendo atingido essas alturas, largam a melodia para madeiras e saxofones que se encarregam de concluir a parte. Ilustram suficientemente o que foi explicado, os documentos seguintes, de Plácido de Souza (Ondas largas e Carnaval de Pernambuco), na ordem:

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Após a 2ª parte, sempre repetida, novamente estamos na chamada introdução. A obra é executada umas oito vezes. E termina em acorde perfeito, agudo e longo, apoiado ora na tônica, ora na dominante, ora, o que é mais característico, na mediante. O tarol e o surdo continuam batendo, enquanto a fanfarra e os passistas descansam até trilar novamente o apito do mestre. Essa batida não é a mesma que vigorou durante a execução do frevo, ou seja, a seguinte, inalteravelmente:

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Embora com maior liberdade para o tarol.

No descanso do pessoal, há variantes deste último instrumento, mantendo-se sem alteração a batida do surdo. Mas, o andamento é mais rápido. Muito mais rápido. Revelaram-me a razão do fato: o povo, no passo, prende muito a marcha do clube. A fanfarra caminha lentamente, no enfarofado da massa. E durante os intervalos da execução que se tira a diferença, obrigando o povo a locomover-se mais depressa. Mesmo porque o itinerário, aprovado pela polícia, é longo e o contrato com os músicos estipula um prazo máximo para prestação de seu serviço. Por isso, puxa-se na marcha do cortejo.

Cabe, ainda, uma palavra sobre o acompanhamento harmônico da composição, reduzida tão somente aos graves, nada mais.

Reclama a execução do frevo sangue pernambucano nas veias. Não é tarefa para quem nunca o ouviu, num terceiro dia de Carnaval, no Recife. Nem valores individuais pesam isoladamente na balança, como, de resto, em nenhuma orquestra. Também não se trata, propriamente, de homogenei­dade, afinação, justeza. É preciso um cachet especial, de cada músico em particular e do conjunto global, para emprestar ao frevo o seu corte rítmico inconfundível. Enquanto a Federação Carnavalesca Pernambucana não mandou ao Rio de Janeiro pessoa capaz — o Zuzinha — para ensaiar as bandas encarregadas das gravações dos frevos premiados em seus concursos anuais, o que de lá nos enviavam era muito pobre, desse ponto de vista. As notas certinhas, sim, mas, o andamento errado o ritmo frouxo. Foi preciso escrever as instrumentações, controlar a execução. Porque o frevo é diferente. Do maxixe, disse Mário de Andrade que “a originalidade consiste apenas no jeitinho. No jeitinho de tocar e de cantar”. Também o frevo tem seu “jeitinho”, além de tudo o mais que tanto o singulariza no populário musical do Brasil.

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O PASSO

O passo é a dança que se dança com o frevoBem que se diz, também, “dançar o frevo”, como com a valsa se dança a valsa, e com o samba, o samba. Contudo, a gente entra no frevo para “fazer o passo”. E cada um faz por si, como o capoeira fazia. É o tipo da dança individualista. Não há combinações coreográficas, não há parceria nenhuma, a não ser um que outro “chã de barriguinha” ocasional, mesmo assim cada um procurando se satisfazer, sem pensar no outro.

Antes do mais: ninguém está falando em frevo de salão. O frevocomo muita dança popular, subiu da rua para os salões, perdendo, na subida, muito de sua personalidade. Fazem roda, vai um dançarino para o meio dela, mostrar habilidades, depois engatam uns com os outros como em “cobra” de quadrilha, mexem-se e remexem-se, e tudo isso, afinal, é deformação do passodo passo do moleque disposto a se acabar. Basta ver: o granfino que se aventura a cair no passono meio da rua, abandonando, por momentos, o carro do corso ou o meio-fio de onde aprecia o movimento, com pouco tempo recua, desiste, como galo de briga apanhado. Vem para um lado limpar a roupa, endireitar o sapato que escapou do pé, chorar o calo de estimação, recompor-se, rindo amarelo. Arrepunha o rojão. Por isso, aqui não se fala nesse passo de salão, que não tem consciência nenhuma do que é. Nem dos muitos passos que não são o passo autêntico, mas imitações de iniciados que de qualquer modo se agitam, incapazes, porém, de executar as figurações características.

O passo é a dança mais arbitrária que se conhece. A mais imprevista. A mais surpreendente. Porque está sujeita às circunstâncias do momento, à compacidade maior ou menor da massa, às irregularidades do calçamento sobre o qual o moleque se espalha, ao poder do estímulo musical, função do maior número de figuras da fanfarra, de sua afinação, de sua homogeneidade, até do dia e da hora. Apesar disso tudo, o passo ganhou, com o tempo, a sua feição típica, cristalizando em certas atitudes que revelam uma natureza coreográfica definida. É o “parafuso”, o “chã de barriguinha”, o “corrupio”, a “dobradiça” (antigamente “dobradice”), o “saca-rolha”, o “de bundinha”, a “tesoura” etc., — variantes coreográficas a que Jorge de Lima chamou, com propriedade, ideogramas mímicos.

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ORIGENS DO PASSO: A CAPOEIRA

A primeira sugestão que nos oferece o passo é a da capoeira. Em toda a parte, dança de multidão em Carnaval é vai-e-vem tolo, de tempo binário certo, pés se arrastando, os foliões uns atrás dos outros, gingando, pulando, sem rumo. No Recife, devia ser assim também, com o Zé Pereira, que vem do século XIX. Mas, a capoeira lhe deu um norte, sem querer. Pode ter existido, como existiu, em outras regiões do país. No Recife, era um brasão, porque de muito tempo se falava, já, em Leão do Norte e a bravura do pernambucano não admitia confronto. A fama vinha dos Guararapes, retemperada em 1710, em 1817, em 1824, em 1848, na guerra do Paraguai. A capoeira procedia de longe. Era uma “espécie de exercício ou jogo atlético, praticado por indivíduos de baixa esfera, vadios, desordeiros, e na qual esgrimem os lutadores cacetes e facas e, servindo-se, ainda, em passos próprios, que obedecem a umas certas regras e preceitos, dos pés e da cabeça, valentes, ágeis e ligeiros, vencem o adversário”. Beaurepaire Rohan afirmara ter sido tal jogo introduzido no Brasil pelos africanos. Com pouco tempo, capoeira passou a designar o indivíduo desordeiro que esfaqueava às vezes por gosto, negaceando o corpo à custa dos passos da arte e escapando, com facilidade, à polícia. Por volta de 1856, partidos de capoeiras se formaram no Recife. Parece que vem daí o primeiro sinal de vida do passoDuas bandas de música se tornaram rivais: a do 4° Batalhão de Artilharia, mais conhecido pela abreviatura — o Quarto — e a de um corpo da Guarda Nacional, que tinha como mestre um Pedro Garrido, espanhol cuja nacionalidade batizou o partido contrário — o Espanha. A rivalidade era espicaçada pelos capoeiras de um e outro grupo, que, aos delírios do seu entusiasmo, com o chapéu na coroa da cabeça, gingando, pulando e brandindo o seu cacete, iam à frente da banda preferida, desafiando os adversários, às vezes com frases rimadas:

Cresceu,
Caiu!
Partiu,
Morreu!

Nunca mais, parece, capoeira deixou de pular na frente das bandas de música. Os valentões se multiplicavam pelas ruas do Recife, de cacete na mão, faca no cós esquerdo da calça — os de pé-no-chão; de bengalão de volta suspenso no braço, lambedeira de Pasmado na ilharga — os mestres mais acatados; de quiri de castão de quina e punhal de cabo de marfim na cava do colete — muito rapaz de boa família que gostava de ir, com Nicolau do Poço ou Nasci­mento Grande, acabar pastoril só pelo gosto de acabar.

A ralé entrou no século XX saracoteando na frente das musga, como balizas temíveis que podiam fechar o tempo a qualquer momento. Eram os capoeiras, ensaiando os seus primeiros passos carnavalescos. A Pimenta, em 1901, escrevia: “Um indivíduo, julgando-se muito engraçado, vinha na frente, à moda caixeira”. E, em fevereiro de 1907, o Jornal Pequeno estampava: “Fazendo exercício de capoeiragem vinha ontem, à 1 hora da tarde, em frente ao clube carnavalesco Tome Farofao indivíduo Anselmo Arselino Marinho. Este indivíduo com um compasso escalado investiu contra o diretor daquele clube…” No meu tempo de menino, o que era banda de música abria passagem com a molecada piruetando na frente, como tropa de choque.

O pé-no-chão que hoje acompanha os clubes pedestres, pelas ruas do Recife, é um descendente direto do cafajeste que a polícia de Santos Moreira e Ulisses Costa acabou, entre 1906 e 1911. Os últimos valentões ainda pularam muito no frevoacirrando ódios entre as agremiações carnavalescas, de que resultou muito encontro sangrento. Um congresso que se realizou, nessa época, no Recife, conseguiu a paz entre os clubes, justo quando os remanescentes da capoeira iam desaparecendo da crônica policial. Deve aludir-se, entretanto, aos cordões, que desde muito tempo, fechavam o acompanhamento e realizavam manobras na cauda do préstito, ricamente vestidos e empunhando distintivos do clube: uma pequena pá — o das Pás, um machado — o dos Lenhadores, uma brocha em miniatura — o dos Caiadores, um tabuleiro cheio de frutas e hortaliças — o das Quitandeiras, um abano margeado de arminho — o dos Abanadores. Essas “manobras” não tinham que ver — e ainda hoje assim é — certas figuras de quadrilha ou certas jornadas de pastoril, comandadas por um maioral, que se esforça em pôr a ordem na desordem. De ano a ano, a coreografia do passo se veio enriquecendo de novos motivos, se desdobrando em variantes, se aperfeiçoando dentro da cadência áspera do frevoE isso continua, porque o passo está bem longe de ser uma dança “que se vai extinguindo”, como li em Aníbal Machado. Ao contrário, sua vitalidade é um dos fatos mais sensíveis em nossa vida carnavalesca.

Há ainda, no passomarcada influência do bumba-meu-boisem dúvida anterior a ele (ou será que esse, por sua vez, sofreu a da capoeira). O fato é que certos personagens daquele folguedo, os que chegam de visita, como o Médico ou o Engenheiro, possivelmente o Padre Capelão e mais outros, trazem o seu chapéu-de-sol aberto. E com ele, assim aberto, dançam. Com a circunstância de continuamente cruzarem as pernas, voltando sobre elas, movimentos que são, no bumba-meu-boiverdadeiras constantes coreográficas. Como o são, igualmente, no frevo típico. Em suma: a dança do bumba-meu-boi sugere, de imediato, determinadas atitudes dinâmicas do passo.

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OS PASSOS DO “PASSO”

A inventiva do povo colaborou nesse enriquecimento. As criações momentâneas vieram surgindo, sem regra nem lei, numa ambiência de espontaneidade, provocada pelos atritos dos corpos em promiscuidade, na “onda” desgovernada.

Não estou escolhendo adjetivo, nem fazendo literatice. Variantes do passo não se descrevem que nem um pas-de-deux ou um grand-jeté. Têm muito de impulsividade, de instabilidade, de versatilidade, de improvisação, de instinto, para poderem espartilhar-se numa descrição rígida, como a de certas danças monótonas, de desenhos fixos e limitados. Aqui vão alguns passos mais típicos.

  1. a) O passista se curva para frente, mantendo erguida a cabeça e flexionando as pernas. Apoiado apenas sobre um dos pés, arrasta-o, subitamente, para trás, substituindo-o, logo, pelo outro, que por sua vez se movimenta do mesmo modo e assim por diante. Esse jogo imprime ao corpo uma trepidação curiosa, sem deslocá-lo sensivelmente. É a dobradiça.
  2. b) O passista se abaixa, rápido, com as pernas em tesoura aberta e logo se levanta, dando uma volta completa sobre as pontas dos pés. Se cruzou a perna direita sobre a esquerda, vira-se para a esquerda, descreve uma volta completa e, finda esta, temo-lo com a esquerda sobre a direita, sempre em tesoura — tesoura que ele desfaz com ligeireza para tentar outro passo. É o saca-rolhaou parafuso. Às vezes, antes de desfazê-la, cai, com todo o peso do corpo, sobre o bordo externo do pé da frente e salva bruscamente o descaimento, libertando o outro pé. Outras, depois do cruzamento inicial das pernas, dá apenas meia volta e, na ponta dos pés, empina o busto com os braços para o alto, como se oferecesse os peitos ao choque brutal de um companheiro.
  3. c) O passista cruza as pernas e, mantendo-as cruzadas, desloca-se em passinho miúdo para a direita, para a esquerda, descaindo o ombro do lado para onde se encaminha. Alinhava o movimento molengo de quem vai por uma ladeira abaixo, com uma estacada súbita, retornando ao grosso da multidão. É o de bandinha.
  4. d) O passista, com os braços para o alto e as nádegas empinadas, aproxima e afasta os pés, ou caminha com as pernas arqueadas e bamboleantes.
  5. e) O passista se curva profundamente ao mesmo tempo, em que se abaixa, rodopiando num pé só, em cuja perna se aplica, flexionada, a outra perna, ajustando o peito do pé à panturrilha. Toma uma atitude de quem risca a faca no chão. É o “corrupio”.
  6. f) O passista adianta uma das pernas, jogando para frente o ombro do lado da perna que avança, o que faz ora à direita, ora à esquerda, alternadamente, na posição de quem força, com o peso do ombro, uma porta. Este passo, se se encontra parceiro, é feito vis-à-vis.
  7. g) O passista descreve, todo empinado, o passo miúdo, um círculo, como galináceo que corteja a fêmea.
  8. h) O passista anda como aleijado, arrastando ora a perna direita, ora a perna esquerda, alternadamente, enquanto a restante se conserva em ângulo reto.
  9. i) O passista se põe de cócoras e manobra com as pernas: ora para a frente, cada uma por sua vez, o que é imitação reles de dança russa, ora, o que é passo legítimo, para os lados, distendendo cada uma delas quase completamente.
  10. j) O passista, com os braços levantados, aproxima-se, vis-à–vis, de um companheiro e com ele troca uma umbigada, que nunca chega a ser violenta. É o chã de barriguinha. Se são as nádegas que se tocam — o que não é muito comum — tem-se o chã de bundinha.
  11. k) O passista se verticaliza afoitamente, espiga o busto, levanta os braços e caminha em passo miúdo, arrastando os pés em movimentos saccadés.
  12. m) O passista dá uma volta no ar, de braços arqueados, caindo com as pernas cruzadas. Melhor dito: com os tornozelos cruzados, apoiando-se, pois, sobre os bordos externos dos pés.
  13. n) O passista dá grandes saltos, para um lado e para outro, mantendo estirada a perna do lado para onde se dirige e tocando o chão com o calcanhar.

É impossível descrever todos os passos do passoNão pelo número, mas, pela qualidade. O livre arbítrio é a regra. E nunca se encontra dois passistas dançando igual.

Os que foram descritos, os mais “clássicos”, mais espalhados, onde o gênio do povo mais se apurou, são acrobáticos. O passista não os faz bem se não traz consigo um chapéu-de-sol velho, de umbela esbandalhada e ponteira espetando um pão de tostão, e que representa, em suas mãos, um instrumento de equilíbrio coreográfico. Era coisa muito comum, principalmente durante o dia. Hoje o é menos. Como já disse, esse chapéu-de-sol está no bumba-meu-boi e vem dele, sem dúvida nenhuma.

Um traço que não deve escapar é o jogo dos braços, nunca o mesmo para todas as variantes do passo. Eles têm sua eloquência na plástica das atitudes. Erguem-se, às vezes, esticados. Houve quem dissesse que isso era defesa dos lança-perfumes. Inexato. O lança-perfume, dentro da “onda”, é exceção à regra geral. O moleque não se dá a tais luxos. Em mil, há um. Outras vezes, os braços pendem ao longo do corpo banzeiro, exprimindo lassidão estudada, parecença com bêbedo derreado. Ainda outras, muito comuns, quando o passista se entretém num jogo macio de pés, o braço, caído naturalmente, forma ângulo reto com o antebraço e, este, outro ângulo reto com a mão, pendida e molenga. Em certas atitudes, de corpo que se abaixa subitamente, os braços se arqueiam, equilibrando o homem.

Certos passos há de irresistível comicidade. Surpreendem-se nas clareiras da massa humana, ou destacados dela, num passeio furtivo pela calçada próxima, quando o passista ensaia o “passo do urubu malandro”, triste, braços pendidos, ou o “passo do caranguejo”, de grandes pernas abertas, andando de um lado para outro, a cabeça balan­çando, como desnorteado… Imita-se a ema, o bêbedo, o macaco, o epiléptico, o pederasta. Mas, isso já não é passo. É compasso de espera de um mostradeiro para se mergulhar, de novo, na “onda”.

O passo mais típico é mesmo o que lembra a luta dos capoeiras, investindo, aparando golpes, fazendo que puxa a faca, que a risca no chão, que a mete no bucho do companheiro e foge no seio da maçaroca humana como os outros outrora fugiam. Tudo isso agilmente, acrobaticamente, como bons ginastas. Mas, insisto: cada um faz por si, jogando com sua imaginativa, tal se estivesse esgrimindo fantasmas, sem querer brigar, que hoje ninguém briga mais no frevo. Como não há doenças, mas, doentes, bem se poderia dizer que não há passo, há passistas, porque cada um destes reage diferentemente ao excitante sonoro. Essa multidão, confusa e irrequieta, oferece uma soma de aspectos inéditos que o olhar do observador não pode abarcar em sua totalidade. A impressão global que fica é a de uma loucura coletiva, em que ninguém e estranho ou intruso, pode fundir-se na massa sem pedir licença. Para citar palavras alheias: “delírio coreográfico em cuja composição parecem ter colaborado a acrobacia, a luta do tacape, a técnica vertiginosa da capoeira e a dança de São Guido” (Aydano do Couto Ferraz, O que é o frevo, em Plaquete da Exposição de Augusto Rodrigues, Rio de Janeiro, 1942).

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SEXUALIDADE E RELIGIOSIDADE

Duas coisas não descubro no passo: nem sexualidade, nem religiosidade. É claro que a inhaca do negro sempre atiça o sentido. Há de haver oportunidades bem aproveitadas, amor é coisa sempre presente, mas, o passista não está pensando nisso. Começa que a percentagem da mulher no frevo é diminuta. Num mexido de passistas, o que há mesmo demais é homem. Mulher que aparece é meretriz ou semi-virgem. Quase sempre enjoa a parada. Aparecem criadinhas, de braço com outras, mas preferem os limites da massa humana, namoradas por um ou por outro, que tem de deixar o passo e quiser entendimento. Parece que a paixão pela dança é tão grande, no passista, que não dá lugar a nenhuma outra. Ele se entrega de corpo e alma aos seus espasmos musculares, se interioriza, de olhar pregado no chão, nos pés. E uma dança egocên­trica, no meio de uma multidão de egocêntricos. O sexo não influi nela. Os recalques libertados são de outra natureza.

Outra coisa é a religiosidade. Não vejo nenhuma. Não tem pinta de misticismo. Nada que revele crença, obediência, fé, respeito a poderes sobrenaturais. Nenhum vestígio de mitos, lendas, superstições. Mesmo em certas atitudes de êxtase, de renúncia, de abandono, não descubro ascensão espiritual, integração no ideal ou no absoluto. Simplesmente cansaço, fadiga, um estado de repleção física. De orgasmo trabalhoso.

“Realizada no ambiente livre das ruas, fora de qualquer artifício, com os recursos exclusivos do instinto e do sentimento”, só uma coisa eu vejo os passistas respeitarem, ainda nos momentos de maior exaltação: a fanfarra que caminha no meio da “onda”. Parece um tabu. Núcleo bem delimitado de um imenso corpo celular em cuja intimidade se processam as mais complexas reações. Lembra um andor no meio do formigueiro de uma procissão: ninguém toca nele, ninguém o empurra.

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DINAMOGENIA DO FREVO

A corrente dinamogênica do frevo é mais alternada que contínua. Oferece, dentro da partitura musical, pausas para o repouso — para o repouso dos músicos e para o repouso dos passistas. Isso é muito curioso.

A introdução do frevo, como já vimos, é sumamente violenta. A criatura cai fundo no passo. Sob o excitante metal, o passista dá o que tem. Mas, os primeiros compassos da segunda parte reduzem, de muito, a intensidade do estímulo. A multidão se entrega a um repouso relativo. Mobiliza novas energias. Do 8° ao 13° compassos, porém, os metais pegam de novo, com vontade, e o passista retoma o passo, se esbandalha, para logo descansar no restante da parte. Como esta sempre se repete, o passista goza novas oportunidades de descanso até que volta à introdução, que o desorienta sem mercê. É um fim de mundo: choques brutais, acotovelamentos, pisadelas, empurrões — sem um protesto, sem uma queixa, sem um insulto. Depois de uns dez minutos, o acorde final é recebido com um oh! de decepção e tristeza.

O passo que melhor se dança é no bairro de seu berço: São José. E melhor ainda naquelas ruas antigas, mal calçadas e mal iluminadas. O piso uniforme do calçamento moderno rouba, ao passista, uma das forças de sua invenção — a irregularidade das pedras. Depois, onde a multidão se torna menos densa, mais fluida, o passo amortece.

Ainda outra observação: há um misterioso estímulo visual nos archotes ou lampiões que alumiam a multidão, indo com ela, conduzidos por dois ou quatro moleques. À luz deles, reluzem os metais da charanga como chispas de fogo no fundo negro da rua. A obscuridade é um convite ao frevo. Não há passista bom que prefira a rua Nova bem iluminada e bem calçada às ruas de São José, que têm, para ele, encantos de terra natal. Aí e que ele experimenta a sensação de “totalidade”, com que se entrega ao passo, como um místico à adoração de seu deus.

Agora: o que se não deve esperar é que toda a gente que compõe as multidões dos clubes pedestres do Recife, saiba fazer, ou esteja fazendo, o verdadeiro passo. Muitos acompanham o povaréu, tentando, ensaiando, aprendendo. Por isso, muito frevo se poderá ver sem se ter visto o passo. Os bons passistas, de corpo de mola, elásticos, se destacam logo como técnicos, e é nestes que se deve pôr a atenção, porque eles merecem. São os únicos que apreenderam os ritmos essências do frevo.

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ESTILIZAÇÃO DO PASSO

Música de 2/4 e coisa que não falta a qualquer Carnaval. Gente dançando com ela, arrastada naturalmente, fazendo “cobra” e gatimônias, também não falta. Eu creio, porém, que não há, no mundo inteiro, um binário tão sacudido, tão pessoal, tão típico, como o do frevo nem dança tão estranha e tão expressiva, pelos modos de sua criação, como o passo. Jorge de Lima escreveu, certa vez, que “todas as outras danças, por exemplo, o maracatu, podem ser estilizadas em suas figurações pelos eruditos, menos o frevo, justa­mente pelo cunho irredutivelmente selvagem que há nos menores movimentos e atitudes dos dançarinos”. A verdade é que o passo, apesar de arbitrário e versátil, possui fundamentos técnicos e não exclui, antes convida, ao virtuosismo coreográfico. Se um Lifar visse o passo feito por um passista autêntico, estou certo que imaginaria qualquer coisa de extraordinariamente bela e viva, lá na sua coreografia. E sua estilização ficaria para sempre na memória do mundo.

Já os artistas do pincel e do lápis puseram tenção nele. Artistas, aliás, todos eles pernambucanos, o que se explica, porque mais fundamente tocados pelas graças da paisagem humana de sua terra. Luís Soares nos deu, em algumas de suas telas, uma visão do frevo. Outros têm preferido fixar o passista, como fez Augusto Rodrigues, que o arrancou, com uma pinça, de uma “onda” em manhã de domingo-gordo, para jogá-lo ao papel. Já estudei, em trabalho anterior, esses magníficos flagrantes onde não há, somente, a espontaneidade do traço caricatural, o equilíbrio plástico das figuras, a assi­milação profunda do grotesco que se encontra, sempre, nessas atitudes pagãs. Há, acima de tudo, movimento — o movimento que a melhor câmera não fixaria, numa chegada de páreo ou num lance esportivo. Movimento exaltado, em alguns deles, pelo jogo arbi­trário das sombras, broxadas sem discrição nem medida, elas mesmas adoidadas, perdidas, na dinâmica frenética. Acompanham, perseguem o gesto, mas, não se definem no instantâneo pitoresco, tão bruscas são as mutações da dança caleidoscópica.

Ninguém melhor que Aníbal Machado, na Revista Roteiro já citada, disse da série de frevo do desenhista: “o que Augusto Rodrigues quis exprimir não foi o homem dançando, e sim a dança mesma”. E conseguiu.

De Manuel Bandeira expõe esse trabalho alguns flagrantes de saboroso corte caricatural. Outro traço, outra compreensão, igualmente justa, por ter apanhado, em momento feliz de evocação, os mais típicos acentos dinamogênicos do passo.

Interessando, assim, os artistas, não admira que, um dia, o passo, se lance do papel sobre o palco, sentido e vivido, artisticamente, por um mestre do bailado moderno, que penetrará nos seus domínios como num mundo irrevelado.

Recife, dezembro de 1945 

Artigos – O frevo e o passo, de Pernambuco
(Valdemar de Oliveira)

(Extraído de Boletin Latino Americano de Música. Rio de Janeiro; Montevidéu, Instituto Interamericano de Musicologia, 1946, ano 6, v.6, p.157-192)

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Fonte:
JANGADA BRASIL – A CARA E A ALMA BRASILEIRAS 

Artigos – O frevo e o passo, de Pernambuco (Valdemar de Oliveira)

https://dicionariompb.com.br/valdemar-de-oliveira

http://www.abmusica.org.br/academico/%E2%80%8Bvaldemar-de-oliveira/

#http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=133&Itemid=1

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa427524/valdemar-de-oliveira 

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